A gente
do C.S. A Revolta do Berbês começou no passado Ano Velho a
recuperar e investigar a tradiçom do lume novo. A reactivaçom da
roda cíclica do tempo tradicional ritualiza-se amiúde com lume. O
mais conhecido é o da cacharela de San Joám no solstício de verao,
mas também os há no inverno, na estrutura simbólica em que aparece
o lume novo, o toro de Natal e o Apalpador, quando a luz vence a
noite.
Mais ou
menos à mesma hora na que a rapaziada de Vigo prendia os fachos
diante do local no que se imprimiu o Cantares Gallegos, no
pátio de isolamento do cárcere de Topas um preso espanhol, um basco
e um galego, faziam algo parecido. Um pátio de isolamento é,
basicamente, um cubículo de cimento. Correndo, tem exactamente
dezasseis passos de longo e nove de largo. Correr nele tem pouco de
desporto: no melhor dos casos é algo parecido a meditar passando as
contas dum rosário, no pior, tem mais semelhanças com um hámster
numha rodinha. Os muros som o suficientemente altos como para que só
se poda ver o céu e, nalguns casos, através dumha grelha. De dia, e
com sorte, pode-se ver algumha águia ou bandas de cegonhas migrando.
De noite, o latifúndio das estrelas, ocupado e socializado polos sem
terra de todas as prisons do mundo. Mas, sobretodo, um pátio de
isolamento é isso: um cubículo, umha geometria despida. A geometria
é eterna, perfeita e sem existência no mundo material. Os presos,
os corpos, mortais, imperfeitos e molestamente existentes.
Simplesmente com sermos, impugnamos a totalidade desta geometria
inumana que, paradoxalmente, é incompatível com o seu cometido,
como umha ponte que devora rios ou um lápis que repele palavras. Ao
cárcere dá-lhe nojo o preso. Estorva-lhe. Por isso os carcereiros
costumam responder incomodados com um “¿Qué quieres?” ou “¿Qué
te pasa?”. A nossa presença é um erro, umha irrupçom dos corpos
imperfeitos tam molesta como as bostas dos cavalos nos desfiles
militares.
Era,
como dizia, fim-de-ano, e três presos celebravam sem sabê-lo o lume
novo. O estremenho marchava em liberdade numha semana, e botando mao
dum ritual de purificaçom quase universal, despiu-se da vida velha e
prendeu-lhe lume para começar a nova. Un par de sapatilhas fôrom
parar ao arame farpado, aumentando um milhadoiro carcerário. Outro,
iniciou o fogo, alimentado com partes de sançons penitenciárias e o
Stranger on a train de Patricia Highsmith. E assim, queimar um
livro foi um acto contra a barbárie: esvaeceu a geometria e deixou
passo à parêntese estremecida que todo homem inaugura. Para aquecer
o corpo e a alma. De igual jeito que Kant pode admirar o céu
estrelado desde a aldeia mais miserável do mundo, a mais humilde
cacharela é capaz de condensar a magia dum acontecimento. Umha luz
viva e palpitante, que engendra as sombras elogiadas por Tanizaki, os
recintos nos que habita o encontro. Contra a luz fria e omnipresente
da modernidade e que tem sempre algo de policial, de bisturi ou foco
de vigilância, “um horror para realçar outros horrores”,
dixo-lhe Robert Louis Stevenson; e que fai a Alba Rico sonhar com um
apagom que “embridará os watios e despirá os astros”, que
“apagará Dubai e Nova Iorque e acenderá a Ursa Maior”.
Na
política zapatista as maos, “é sabido! som as figuras que
costumam tomar os coraçons quando se encontram”. Os símbolos,
sym-bolos, som a convergência das pessoas através de um
objecto. Isto é, os símbolos som maos, a forma que atinge um
encontro, a materializaçom do comum: o mao-comum. O lume, com esse
fascínio prometeico, é um símbolo universal, e todos os símbolos
tenhem algo de lume, de chama e chamada. Um contentor ardendo numha
rua tomada pola polícia é já um calor e umha luz solidária,
horizontal e circular –a disposiçom espacial dos iguais- face à
luz vertical e ameaçante do helicóptero policial.
Algumhas
palavras, velhas e pouco sofisticadas, ainda som como foguinhos.
Abrem refúgios na noite e, en vez de iluminar-nos –como fai a luz
soberba e cegadora de Deus, a Ilustraçom e outras palavras com
maiúsculas- alumam-nos. O justo para encontrar-nos e reconhecer-nos,
o mínimo indispensável para un fogar (focolaris) onde
cuidar-se e tirar o frio. Palavras, ou foguinhos, como dignidade,
terra, a casa da nai, independência…. Para dar-nos as maos e
encher as maos de maos, privilégio dos que levamos as maos vazias.
Para sermos.
Carlos
Calvo Varela. Topas, 6 de Fevereiro
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